Daniella Pires Nunes
Enfermeira. Mestre e Doutora em Ciências da Saúde.
E-mail: dpiresnunes@yahoo.com.br
"O tempo passa, ninguém detém a passagem do tempo. Agora saiba viver para melhor envelhecer”
Cora Coralina
O envelhecer é um processo singular e heterogêneo que não deve ser dissociado do contexto histórico da vida daquele que envelhece. A construção social de cada pessoa engloba aspectos culturais, econômicos, sociais, psicológicos que serão estruturados de acordo com os sentidos de vida.
A trajetória biográfica de uma pessoa é análoga à construção de uma casa, na qual o planejamento é primordial para o reconhecimento de cada fase do processo e das demandas requeridas por cada uma. A infância e adolescência assemelham-se à construção do alicerce e da alvenaria, etapas em que as experiências, a aprendizagem e o desenvolvimento do corpo permitem a formação da identidade do indivíduo e são sustentados pelos valores. A fase adulta compreende o período em que o indivíduo desenvolve suas crenças, estabelece sua autonomia, senso de responsabilidade e capacidade produtiva, constrói relações sociais, culturais e econômicas. O conjunto das várias circunstâncias adquiridas nestas fases se reúnem para moldar o ser e serão expressas também ao envelhecer. A velhice é uma etapa do curso da vida na qual, em decorrência da idade cronológica (ter 60 anos ou mais), tem sido considerada uma grande conquista para a sociedade moderna.
Com o esvair do tempo, cada fase da vida precisa ser respeitada e bem vivida para melhor envelhecer. Assim, constantemente cada indivíduo é convidado a apreciar e a cuidar da sua casa (“eu”) com um olhar atento para as necessidades genuínas, estabelecendo comportamentos que poderão moldar sua própria velhice. Convido-lhe a algumas reflexões:
Como você se imagina em sua velhice?
Você realiza atitudes que oportunizarão um envelhecimento saudável?
Assim como em uma construção, a vida também tem vários desafios a serem enfrentados. Com o aumento da idade, a pessoa pode experimentar diversas situações como alterações nos papéis e vínculos sociais, perda de pessoas queridas, comprometimento gradativo da capacidade física e mental. Destacam-se ainda a discriminação e o preconceito contra a pessoa idosa que foram intensificados com a pandemia de COVID-19. São mudanças vivenciadas de formas distintas por cada um que demandam do indivíduo uma capacidade adaptativa bem-sucedida frente à realidade e sentimentos de aceitação da velhice.
Nesse curso da vida a pessoa precisa encontrar um equilíbrio entre perdas e ganhos, dar significado para as atitudes e os eventos cotidianos. Se houver uma resistência em superar esses eventos terá como consequência o surgimento de sofrimentos, que são como infiltrações nas paredes que sustentam a casa. Se a pessoa idosa não consegue manejá-los, isto pode abalar a saúde física e emocional e, consequentemente, podem surgir angústia, ansiedade, depressão, isolamento e doenças psicossomáticas. Para manejar essas infiltrações, a adoção de atitudes autocompassivas podem estimular as pessoas idosas a expressarem como se sentem em relação ao envelhecimento e a si próprios, bem como, a agirem de forma mais assertiva frente aos desafios, fracassos e perdas inevitáveis.
A autocompaixão (AC) pode desempenhar um papel importante para a preparação e aceitação da velhice. Segundo Neff (2003) a AC é definida como a capacidade de cuidar de si mesmo em circunstâncias difíceis da vida, de suportar sentimentos dolorosos e de se sentir conectado com outras pessoas em momentos de sofrimento. A autocompaixão fundamenta-se na atenção plena, autobondade e humanidade compartilhada, e envolve a capacidade de reconhecimento do próprio sofrimento sem se criticar, culpar ou ruminar excessivamente.
Sabe-se que a vivência de situações ameaçadoras ao corpo ativa o sistema de ameaça-defesa, no qual a amígdala (responsável por detectar perigo no cérebro) libera cortisol e adrenalina, aumentando níveis de estresse. Em contraposição, o sistema de cuidado libera a ocitocina (hormônio do amor) que auxilia na redução do estresse e aumenta sentimentos de segurança e proteção.
A AC promove a autorregulação do estresse, e uma mentalidade autocompassiva pode fornecer uma perspectiva de aceitação das adversidades relacionadas ao envelhecimento. Brown et al. (2016) apontam diversos benefícios da AC entre as pessoas idosas e demonstram que pessoas idosas com altos níveis de autocompaixão apresentaram atitude mais positiva em relação à velhice do que aqueles com pontuações mais baixas.
A AC tem efeito moderador na relação entre saúde física e bem-estar subjetivo e ajuda a explicar a variação na forma como as pessoas lidam com os aspectos negativos do envelhecimento. Estudos demonstram que pessoas idosas com altos níveis de AC experimentaram maiores pontuações nos índices de bem-estar, envelhecimento bem-sucedido, satisfação com a vida e funcionamento social; e menores pontuações para sintomas depressivos e doenças físicas. Esses dados refletem que a AC favorece às pessoas idosas o melhor cuidado de si e promove melhores comportamentos de saúde (HERRIOT; WROSCH, 2021; BROWN; HUFFMAN; BRYANT, 2019).
À medida que a pessoa envelhece e cultiva mais atitudes autocompassivas ocorre maior adesão de práticas de autocuidado. O autocuidado envolve ações voltadas para si nos aspectos físico, emocional, social, intelectual e espiritual a fim de proporcionar bem-estar e qualidade de vida.
Pessoas idosas estão mais susceptíveis a desenvolverem doenças crônicas, como hipertensão, diabetes, artrite, artrose entre outras, e comprometimento nas habilidades em desempenhar atividades do dia-a-dia. Essas condições demandam do indivíduo o cuidado de si no manejo da enfermidade a partir do uso contínuo de medicamentos e a atenção aos sinais e sintomas de agravos; e adoção de comportamentos que promovem bem-estar como a prática de atividade física, alimentação equilibrada e saudável, sono adequado, descanso e lazer. No âmbito social da pessoa idosa, a presença de uma rede social, com membros familiares ou não e que se apoiam e mantêm vínculos harmoniosos tendem a apresentar impactos positivos na saúde física e mental. Na velhice, a finitude torna-se um evento próximo e até real e as necessidades espirituais tornam-se evidentes e indispensáveis.
O cultivo dos fundamentos da AC: atenção plena, a bondade amorosa e a humanidade compartilhada é um guia para o autocuidado. Em analogia à casa com infiltrações, citada anteriormente, tomemos como exemplo uma pessoa idosa com diagnóstico recente de artrose, que gera dores moderadas/intensas e limita a realização de atividades como vestir e tomar banho, e que se reconhece triste e desanimada frente a essa condição (atenção plena); compartilha com outros amigos sua situação os quais também relatam suas dificuldades frente ao tratamento/controle da doença (humanidade compartilhada). Compadecido com a situação dos amigos, acolhe sua condição e reconhece que precisa se cuidar, tomando as medicações para aliviar a dor (bondade amorosa).
Para promover a autocompaixão, primeiramente é necessário o reconhecimento do próprio sofrimento. A partir da atenção plena, a pessoa idosa poderá ter visão clara e sem julgamento e aceitar o que está ocorrendo no momento presente. Isto possibilita ao indivíduo uma percepção mais equilibrada de sua cognição e emoção, sem minimizar ou exagerar na experiência dos sentimentos negativos.
A atenção plena permite que a pessoa idosa observe o que está acontecendo, usando os cinco sentidos; e possibilita escolher a atitude para responder à situação de forma consciente. Uma possibilidade de prática de atenção plena é a respiração afetiva: convide a pessoa idosa a encontrar uma postura na qual seu corpo fique confortável e apoiado. Em seguida, oriente que ela mantenha os olhos fechados, parcial ou totalmente e que respire algumas vezes de forma lenta e suave; e que, se desejar, poderá colocar a mão sobre o coração ou em outro local calmante como um lembrete de consciência amorosa para a sua respiração. Oriente que ela observe a sua respiração em seu corpo, sentindo o inspirar e o expirar, atentando-se como o corpo é alimentado na inspiração e relaxado na expiração. Que ela possa sentir o corpo inteiro sutilmente se movendo com a respiração. Se achar que está bem, oriente que poderá entregar-se ao fluxo da respiração mantendo suavemente sua atenção da respiração, conectando-se com o silêncio e a experiência. Permitindo-se que sinta o que está sentindo e ser apenas como ela é. Ao final, oriente que ela poderá abrir os olhos lentamente e suavemente e, após a prática, estimule a pessoa a refletir sobre a vivência: “O que você observou?”, “O que você sentiu?” e “Como está se sentindo agora?”
Após tomar consciência do sofrimento é necessário incentivar a bondade para consigo mesmo. A autobondade possibilita a compreensão das fraquezas e interrompe o constante autojulgamento, podendo ser praticada por meio da mentalização de frases de bondade-amorosa ou abraçar-se. Para a elaboração das frases, a pessoa é convidada a se questionar “Do que eu preciso?” “Do que eu verdadeiramente preciso?” e deverá expressar desejos verdadeiros. Identificando a necessidade, a pessoa é convidada a escrever e verbalizar as frases durante o seu dia. Seguem alguns exemplos de frases de bondade-amorosa:
Que eu possa ser corajoso (a).
Que eu possa ser bondoso (a) comigo mesmo (a).
Que eu possa descansar durante a noite.
Que eu possa ser autêntico (a).
Que eu possa ser mais saudável.
Outra maneira de ofertar a autobondade é abraçar-se. Fisiologicamente, esse ato desencadeia a liberação de ocitocina, hormônio que reduz o medo, a ansiedade e neutraliza situações estressantes. Que tal cultivar o hábito de se abraçar quando estiver sofrendo e fazer essa prática várias vezes ao dia, por um período de pelo menos uma semana e experimentar os benefícios dessa gentileza consigo mesmo?
Quando as pessoas sofrem ou falham elas tendem a se sentirem isoladas ou desconectadas socialmente. No entanto, compartilhar o sofrimento possibilita uma conexão com o outro e que é inerente ao ser humano e necessário para atingir o pleno potencial para superar os desafios da vida
A possibilidade de ensinar pessoas idosas a promoverem atitudes autocompassivas oportuniza a elas o reconhecimento de suas necessidades reais, a ressignificação de afetos e vínculos, a elaboração lutos, a apropriação do seu cuidado; e, consequentemente, propicia mais autonomia, independência e participação social.
À medida que a pessoa idosa cultiva comportamentos bondosos autodirigidos, reformará a infiltração em sua vida, tornando o envelhecer uma fase que pode ser bem vivida. Ademais, leitor, ao praticar atitudes compassivas no seu dia-a-dia estará, a longo prazo, fortalecendo estratégias emocionais para viver bem a sua velhice.
O tema autocompaixão foi contemplado na última edição do CONBRASEH - Congresso Brasileiro On-line de Saúde e Envelhecimento Humano que teve como eixo temático "Dimensões do Cuidado à Pessoa Idosa". Saiba mais: https://eventos.congresse.me/conbraseh
Referências
BROWN, L.; HUFFMAN, J. C.; BRYANT, C. Self-compassionate Aging: A Systematic Review. Gerontologist, v.59, n.4, p.e311–e324, 2019. Doi: 10.1093/geront/gny108
BROWN, L.; BRYANT, C.; BROWN, V.; BEI, B.; JUDD, F. Self compassion, attitudes to ageing and indicators of health and well-being among midlife women. Aging Ment Health, v.20, p.1035–1043, 2016. Doi: 10.1080/13607863.2015.1060946
HERRIOT, H.; WROSCH, C. Self-compassion as predictor of daily physical symptoms and chronic illness across older adulthood. J Health Psychol, 2021. Doi: https://doi.org/10.1177/13591053211002326
NEFF, K. D. The development and validation of a scale to measure self-compassion. Self Identity, v.2, p.223–250, 2003. Doi: 10.1080/15298860309027
NEFF, K. Autocompaixão: pare de se torturar e deixe a insegurança para trás. Teresopólis, RJ: Lúcida Letra, 2017.
NEFF, K.; GERMER, C. Manual de mindfulness e autocompaixão: um guia para construir forças internas e prosperar na arte de ser seu melhor amigo. Porto Alegre: Artmed, 2019.
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